terça-feira, 14 de dezembro de 2010

CARTA DAS FILARMÔNICAS EM PORTO SEGURO

Fred Dantas

Nas comemorações dos 510 anos do descobrimento do Brasil o assunto bandas filarmônicas voltou ocupar o centro das minhas preocupações, mesmo satisfeito em ter realizado com sucesso, a convite da Secretaria de Cultura, um encontro de bandas no recente congresso da ONU em Salvador, mesmo tendo prometido numa entrevista na Rádio Educadora renunciar ao tema e me voltar aos estudos acadêmicos.

Quem esteve hoje em Porto Seguro exigindo de mim essa carta não foram fisicamente as bandas filarmônicas, ainda que representadas pela Filarmônica 2 de Julho, a banda da cidade. Eram músicos oriundos de diversas cidades do interior que aqui estavam integrando as bandas militares da solenidade. E as notícias que surgem são bastante desanimadoras.

As duas bandas da cidade de Alagoinhas fecharam suas portas recentemente; um dos mais competentes maestros da Bahia deixou a Lira dos Artistas, em Santo Amaro, depois de meses sem salário; na mesma cidade o experiente mestre Domingos passa por necessidades, sem emprego. Em Itacaré o mestre fez o que outros estão fazendo: entregam os instrumentos melódicos para os rapazes tocarem pagode e arrocha am Salvador, desde que em determinada época atuem com a filarmônica. Em Muritiba a 5 de Março decidiu não esperar mais ajuda alguma e mobiliza a cidade para não morrer.

Caso se faça uma rápida pesquisa, o que se vê é uma situação de risco para mais de duas centenas de instituições musicais, algumas com mais de cem anos de funcionamento, e para  seus arquivos musicais manuscritos, de importância ainda não avaliada. Desde o início do atual governo estadual que nenhum centavo é repassado a essas corporações a título de incentivo, nenhum edital é publicado nem se conhece plano algum para o setor. Isso depois de muitos dos que estão aqui em Porto Seguro terem ouvido, do próprio governador Jacques Wagner em 2007 que em seu governo “as filarmônicas seriam prioridade”.

Na Bahia as bandas filarmônicas não se articularam em uma associação nem uma frente de reivindicação organizada, enquanto nos outros estados do Brasil elas formam federações, existindo até uma confederação nacional. Isso porque aqui a ação do estado sempre se antecipou a isso, primeiramente nos programas de apoio ligados à  Secretaria do Trabalho, depois à Fundação Cultural, confluindo para a constituição de um aparelho para-estatal, uma casa das filarmônicas, hoje inativa. Chegamos finalmente a um tempo em que tal apoio simplesmente inexiste. Surge ao contrário, intenso investimento em um núcleo de orquestras juvenis, inspiradas em uma rede chamada El Sistema, com origem na Venezuela, que se pretende espalhar interior afora, e as filarmônicas foram apanhadas sem ação, depois de esperarem inutilmente um plano, uma política para o setor, que não veio.

Por que enfim essas bandas devem ser apoiadas pelo estado? Porque há anos iniciam, integram e profissionalizam milhares de crianças e jovens sem lhes cobrar um tostão, ao contrário, acessando um instrumento, fardamento e lanche diário. Porque estão intimamente ligadas à vida social da suas cidades, presentes em todos os momentos, da solenidade, de cunho religioso ou de pura festa. Porque em seus arquivos brota um notável patrimônio de músicas originais, em maioria compostas nas próprias cidades, por competentes compositores dos quais todos têm o direito de saber o nome, obra e tudo que fizeram pela música.

Uma solução seria uma parceria lógica e orgânica entre prefeituras e bandas da cidade mas isso raramente ocorre, e quando existe vem atrelado a interesses políticos imediatos. Se raros são os prefeitos conscientes do trabalho da banda em sua cidade, mais raro ainda é o gestor que o faz de maneira equilibrada, quando há dois grupos locais. E em geral políticos costumam se sensibilizar mais com o colorido e movimentação das fanfarras que com o trabalho discreto e profissional das bandas filarmônicas, que usam toda a teoria da música ocidental: pentagrama, notas, dinâmica e sinais de expressão.

Em Cachoeira, terra de Tranquillino Bastos, considerado o mestre dos mestres de banda e criador de uma linguagem nacional para esses grupos, existem duas bandas de música centenárias e uma bem jovem, criada há poucos anos. Todas elas estão cheias de crianças e jovens estudando e lendo partituras e convivem com sérias dificuldades em continuar esse trabalho. Há três anos nenhuma delas recebe ajuda do estado, mas lá já se estuda um local outro, para instalar uma dessas orquestras juvenis Se isso acontecesse agora, criar-se-ia na comunidade duas realidades para trabalho sócio-musical: os com-apoio e os sem-apoio.

A princípio se poderia imaginar que a falta de ação para o setor das bandas de música se devesse a uma distração, alguma incompetência ou falta de identificação dos gestores da cultura com grupos musicais tradicionais. Mas agora se percebe (como chegou a ser anunciado na Agenda Cultural, que as bandas que quisessem apoio deveriam procurar o núcleo de orquestras), que o sistema  dirige-se ao aparelho físico e humano das bandas de música para a sua pretendida expansão rumo ao interior. Arranha a nossa imaginação que o abandono das bandas pelo estado teria sido proposital, para que as bandas de música anêmicas, desmoralizadas pela falta de recursos e desmotivadas por uma intensa propaganda em torno das tais orquestras, sejam pressionadas a ceder seus espaços e seus alunos.

Não estarei sendo sectário nem intransigente ao declarar que uma negociação entre bandas e orquestras nesse momento é a priori injusta, visto que um lado não tem recursos e ao outro aparentemente não faltam recursos. O que poderia ocorrer seria o enfraquecimento de duas centenas de instituições independentes, cada qual com seus estatutos e dirigentes eleitos democraticamente, e sua substituição por uma estrutura piramidal, onde no topo está um líder único e um sistema pedagógico que não agrega experiências locais.

Para as bandas filarmônicas a primeiríssima conseqüência seria o abandono do repertório local, subjugado pela música clássica pré-fabricada, impressa e experimentada. Depois, para um setor da educação musical cuja eficácia só agora vem despertando estudos acadêmicos, significaria o abandono de um método de partitura e instrumento que tem funcionado. Esses mestres de banda, sejam elas civis ou religiosas, iniciaram e profissionalizaram a totalidade dos músicos de sopro que integram as bandas militares e profissionais, inclusive os jovens que atualmente estão integrando as orquestras sinfônicas.

Enfim, haverá lugar para todos, desde que um dos lados não seja injustiçado. Orquestras sinfônicas nunca inviabilizaram bandas filarmônicas em lugares onde tiveram oportunidades iguais. Por isso o que se deseja é um plano emergencial de recursos para todas as bandas de música do estado. E que para isso não lhes seja, aos moldes de editais, exigido muito palavrório nem um turbilhão de documentos. Deixem que seus alunos, sua música e suas histórias falem por si, nesse primeiro momento. Com essa tardia mas providencial primeira ajuda, elas terão condições de receber com dignidade as notícias dos novos tempos que chegam.

O governo conhece contatos, números e necessidades das bandas filarmônicas, através de um questionário que todas responderam. Se essa ajuda não chegar logo, parece evidente que o que está em curso é uma espécie de genocídio cultural, onde uma ideologia esmaga a outra e ocupa seu espaço. Sendo assim, é melhor que eu dê por encerrada uma militância de quase trinta anos e que enterrem meu coração na curva do rio. Do Paraguassu, de preferência, à margem do qual nasceram Tranquillino Bastos, Heráclio Guerreiro, Amando Nobre e Estevam Moura.

Porto Seguro, 22 de abril de 2010.

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